o consolo da arquitectura


O poder da arte e da arquitectura na transformação do homem é fonte de suspeita. Já Platão considerava o actor um pernicioso ilusionista da realidade, máscara da verdade. A desconfiança não é nova, portanto.
Dado o carácter público da arquitectura é necessário encontrarmos um território comum que nos permita conviver quotidianamente com o mau-gosto do vizinho da frente. É a constituição pública da arquitectura que gera o conflito entre o mundo que escolhemos para habitar e a articulação dessas escolhas individuais com a dos outros indivíduos: o conflito entre a “liberdade colectiva” e a “liberdade individual” de Le Corbusier - prevalecendo, para este, o bem colectivo. É este o terreno de geografia áspera onde a arquitectura se fixa. E a modernidade não veio ajudar. Pensar a arquitectura é também uma reflexão sobre a possibilidade e influência que a paisagem construída exerce sobre nós.
Se até ao século XVIII as respostas eram simples de encontrar, essencialmente sistematizadas por Vitrúvio e verificadas por mais de mil anos de utilização, a modernidade rasgou a convenção. A redescoberta no Renascimento do cânone clássico aprofundou o impulso arquitectónico fiel à utilitas, venustas e firmitas, aos ideais abstractos da ordem, simetria, proporção; Palladio e Alberti popularizaram o “gosto” e organizaram-no construtivamente, mas o século XVIII adquiriu novas apetências por narrativas “originais”. O “estilo” passa a questão central da teoria. Gótico, Medieval, Egípcio, Islâmico, Otomano, ecletismo carnavalesco a la carte para resolutamente não se conseguir afirmar o que é “belo”.
A cultura tecnológica e utilitária, a École Polytechnique de Paris, a filosofia dos engenheiros, as possibilidades dos novos materiais, encerram a polémica: o belo é o prático, tornar o prático belo é o “dever” da arquitectura. A beleza reside no “para quê” das coisas e na adequação tecnológica de “como” elas se erguem.
Este momento é crucial para o nosso entendimento do Movimento Moderno e da contemporaneidade: o debate estético é substituído por considerações de ordem prática e utilitária e na persecução de um programa da “verdade tecnológica”. O belo são os quatro degraus aritméticos, a tecnologia a Revelação.
Mas a “máquina de habitar” emperrou - tanto que o filho do casal Savoye teve que recorrer a um sanatório para debelar uma infecção do peito consequente às infiltrações do plano de nível da cobertura da Villa. Herdeiros das incoerências do modernismo regressamos ao carnaval e à questão que nos deixa sempre sozinhos: o que é o “belo” na arquitectura?
Alain de Botton avança com Ruskin: um edifício, uma casa, não são apenas abrigo, mas uma promessa de felicidade. São “visões de felicidade”.
A arquitectura espelha as qualidades humanas, as tonalidades emocionais, numa fisionomia da alma aplicada ao ambiente construtivo. O belo é o reconhecimento da arquitectura como “transubstanciação dos nossos ideais individuais”.
Mas isto é esperar demasiado da arquitectura. É confundir o belo com os aspectos morais da felicidade, é querer acreditar ainda na capacidade salvífica da arquitectura, é esperar que a arquitectura legitime uma visão de nós mesmos na nossa casa. É, aparentemente, uma coisa simples, tornar a arquitectura ferramenta identitária num mundo que se dissolve na velocidade electrónica. Para além dos aspectos propagandísticos – de um indivíduo ou de uma causa – é esquecer as dificuldades do processo produtivo da arquitectura, as formas de propriedade e de promoção com que hoje os arquitectos se deparam.
A arquitectura é um esforço colectivo, e é neste cruzamento de vontades que de Botton se perde na sua escrita comovedora, quase lírica e impregnada de melancolia redentora. Crer na indomável capacidade de transformação moral do indivíduo pela arquitectura é esquecer também os patrocínios pouco recomendáveis de muitos dos edifícios que nos emocionam.



[The Architecture of Happiness, Alain de Botton, Hamish Hamilton Ltd, Londres, 2006]


about this entry